Aos Nossos Filhos, de Maria de Medeiros [Crítica]

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Filme caracterizado por sutilezas trata de questões da maternidade e das consequencias do silêncio, desafiando os pressuposições do espectador com frequencia.
Sem entregar muito do enredo, posso afirmar que há elementos de suspense e drama executados com maestria, e o filme passa longe do clichê da obra sobre famílias disfuncionais. São personagens muito verossímeis, com contradições inesperadas, assim como as pessoas costumam ser. Marieta Severo está excelente em um dos papéis principais. Ela entrega uma vulnerabilidade notável e comove, baseada em suas habilidades como atriz experiente, amparada por um bom roteiro que desenvolve bem seus personagens e enredo.
E falando no roteiro, as reviravoltas são instigantes. O espectador pensa que adivinhou o filme, mas aí é tomado de surpresa. Na encenação, não há espaço para pudores. Seja pela nudez mostrada com naturalidade, seja por momentos antidramáticos e também por beijos apaixonados.
A belíssima trilha sonora é outro aspecto excepcional do filme, com escolhas muito boas que casam perfeitamente com o tom estabelecido pela narrativa. O filme não se intimida em abordar o contexto histórico em sentido amplo, com força dramática extraordinária e singular, em relação a outras abordagens das mesmas temáticas. Planos em que nada é dito verbalmente, porém densos em discurso cinematográfico, agregam um toque especial. Uma história muito particular que fala sobre temas pertinentes de interesse universal. Enfim, um daqueles filmes capazes de fazer o espectador ampliar horizontes, ao mesmo tempo que passa um tempo de qualidade. Palmas para a generosidade de Laura Castro (atriz, roteiro) e Maria de Medeiros (roteiro, direção) em concretizar esse filme, contanto uma história capaz de atingir as mais diversas audiências mundo afora.

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Simone no 30º Festival de Inverno de Garanhuns [Cobertura]

Simone apresentou uma parte do seu novo disco em show no 30º Festival de Inverno de Garanhuns, em Pernambuco. Com três participações marcantes de cantoras-compositoras (Rogéria Dera, Isabela Moraes e Joana Terra, todas pelas quais demonstrou muita admiração) que estão presentes no álbum ‘Da Gente’, o show foi cheio de pontos altos, apesar de algumas problemáticas, como a repetição excessiva de estrofes de algumas músicas e o total não-reconhecimento do coro político que se formava em alguns momentos (uma nova música era logo iniciada). Do lado positivo, grandes sucessos e pérolas se somaram ao repertório do novo álbum, que podia ter tido mais músicas apresentadas, a bem da verdade. Considerando o tempo disponível, cabiam pelo menos mais 3 músicas do disco novo, que por sinal é excelente e sucesso de crítica. ‘Amor Brando’, da lavra de Karina Buhr, por exemplo, fez muita falta. Do lado das pérolas, as versões de ‘Bandeira do Divino’ (Ivan Lins, compositor com extensa parceria artística com Simone) e ‘Pingos de Amor’ (Paulo Diniz), salvo engano nunca gravadas pela intérprete, foram gratas surpresas na sua passagem pelo festival.

Os hits eram principalmente dos anos 70, 80 e 90, algo sobrenatural conseguir estar em forte evidência por tanto tempo. Por exemplo, Simone gravou Iolanda (composição de Pablo Milanés, versão em português de Chico Buarque) com enorme sucesso, sendo a sua versão a mais conhecida no Brasil. A sensualidade atravessou a temática de músicas como ‘Tô que Tô’, ‘Escancarada’ e ‘Boca em Brasa’. Sobre a última mencionada, Simone anunciou, satisfeita, que está que é uma composição de Zélia Duncan faria parte da trilha sonora de uma novela em breve. Vale notar que entre tantas composições brilhantes, de temática semelhante, em ‘Da Gente’, foi a música de Duncan (que integra atualmente o casting da Universal Music) que teve a canção escolhida. Claro que outros fatores devem ter entrado em jogo, mas a força do lobby corporativo não deve ser subestimada. E falando em novelas, ‘Encontros e Despedidas’ (1981), que foi abertura de ‘Senhora do Destino’ (2005), teve sua versão-Simonesca recuperada em outro ponto alto do show. A efeito de curiosidade, as músicas ‘Cigarra’ e ‘Tô que Tô’, que foram recebidas pelo público com muito carinho , também integraram trilhas de novelas no passado. Simone exibiu domínio de palco, alicerçada na sua experiência de décadas. Parecia bastante à vontade e feliz, nesse que foi seu primeiro show com público desde 2019. Fez questão de creditar todos os integrantes de sua banda (duas vezes) e agradecer nominalmente e afetuosamente a diversas pessoas da equipe técnica. Entregou rosas ao final do show para os fãs próximos ao palco, ao som de ‘O Amanhã’, uma música que poderia ter ganhado contornos políticos mais nítidos, mas soou… estranha. Diz a letra “Como será amanhã / Responda quem puder / O que irá me acontecer / O meu destino será como Deus quiser”. Muito mais incisiva e sofisticada foi a segunda música da noite, ‘Haja Terapia’, do pernambucano Juliano Holanda, que a acompanhou na banda e foi o responsável pela direção do show. Uma performance, enfim, com muita troca de energia e representatividade de minorias políticas.

Confira o setlist completo, em forma de playlist no Spotify, do show que Simone apresentou no dia 22 de julho 2022, no trigésimo Festival de Inverno de Garanhuns.

A Rainha Diaba [Crítica]

Por Marco Antonio Vieira, editor do Cultura Revista

Rediscutir a relação e os relacionamentos. Conspirações, armações e contra-conspirações. O que é imposto aos que estão abaixo na hierarquia estabelecida por elementos de poder. Aspiração a ter mais. Enganos. Ser mulher. ‘A Rainha Diaba’ é um filme riquíssimo em temáticas e representações. Reflete os anos 70 do Brasil de maneira ousada e assertiva. Não é uma experiência para os pouco dispostos. A violência coexiste com a potência da trilha sonora de amplo espectro e da direção de arte hipercriativa. Cada plano bonito que esse filme tem. Valoriza o talento dos atores e atrizes protagonistas e do elenco de apoio, tudo se movendo de modo bastante orgânico. E parece effortless. O mundo queer não precisa de muito enfeite. Já maravilha com pouco, vibra cheio de vida diante de tantos interditos. O choque do mundo dos homens com o mundo das bichas e o mundo das mulheres provoca bastante reflexão. Temos aqui um filme sério, que trata de corrupção e de sonhos, com momentos de suposto humor que dizem mais sobre quem ri do que o que está em cena. Enfim, uma das grandes joias do cinema brasileiro, que agora reluz numa cópia restaurada digna da preciosidade que constitui e instiga.

Visto na edição especial 2022 do Janela Internacional de Cinema do Recife, no Cineteatro do Parque, em julho de 2022.

Os Primeiros Soldados, de Rodrigo de Oliveira [Crítica]

Para aqueles que saudaram uma série como Heartstoppers, fica a questão de recusa da memória e do processo histórico em troca de um entretenimento feel good que não faz refletir, é apenas escapismo, e tem o caráter de inspiração bem duvidoso.

Dito isso, estreia o filme ‘Os Primeiros Soldados’, que sem sombra de dúvida merece pertencer ao cânone do cinema queer mundial, uma seleção luxuosa de tanto talento. Temos nesse novo filme um dos melhores castings do cinema brasileiro dos últimos anos, considerando protagonistas e coadjuvantes. Merece destaque, é claro, o national treasure Renana Carvalho, com sua presença cênica avassaladora e dicção indescritível. Johnny Massaro só cresce enquanto ator, com um alcance cada vez mais notável.

Um roteiro, um texto, interpretado pelos atores de um modo, eu diria, semi-teatral. É incisivo, é econômico, com um sotaque distante do Rio, de SP, do nordeste. O filme se passa no Espírito Santo, e isso só contribui para o tom e uma linguagem que soam renovadas. A cena dos fogos de artifício e da apresentação musical são bem representativas desse ponto. Esse é um pedacinho do Brasil pouco destacado, e uma parte significativa da história LGBTQAI+ que jamais ficará saturada de abordagens. Muitas pessoas e grupos tem o direito de contar essa histórias, à seu modo, com suas ênfases e reflexões particulares e muito próprias. Um diferencial importante desse filme são as escolhas dos personagens, em meio a cenas agridoces, tristes, leves e efêmeras, ou com forte erotismo.

O ruído do telefone colocado de volta no gancho. Ou tocando. A acústica de um recado do gravador. Cartas sendo abertas. Até a mesmo a captação do som do filme e sua mixagem remete a uma época anterior. Claro que é excepcional a trilha sonora incidental de Giovani Cidreira e as músicas escolhidas para agregar emoção e subtons a um filme que já parecia muito completo e redondo, com as arestas necessárias (me perdoem o paradoxo). Trata-se de um filme capaz de comover o espectador em diversos níveis, e sem dúvida seu tema central é a esperança. Cenas de beijos brilhantemente encenadas sugerem uma nåo-assimilação elogiável. Uma obra finíssima em seus planos-síntese, que chegam sutis e incidem com uma luz especial de um dia especial. A dificuldade, o sacrifício e as conquistas políticas podem ser muito inspiradoras. Basta disposição para enxergar.